domingo, 7 de novembro de 2010

Nelson Rodrigues

                              COMPLEXO DE VIRA-LATAS
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram[1] e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto: não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamen­te nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi on­tem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “ex­traiu” de nós o título como se fosse um dente.
E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, pa­ra nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as com­portas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: o escrete brasileiro tem, realmente, possi­bilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: sou de um patriotismo inatual e agressivo, dig­no de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de ou­tros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de im­provisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qua­lidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: “O que vem a ser isso?”. Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inver­dade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do qua­dro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos supe­riores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: porque Obdulio nos tratou a pon­tapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: o problema do escrete não é mais de fute­bol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um pro­blema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez  que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, co­mo o chinês da anedota. Insisto: para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

[Manchete Esportiva, 31/5/1958]






[1] Última crônica antes da estréia do Brasil na Copa de 1958.



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